por Pedro Calvi / CDHM
“Antes de qualquer discussão sobre este acordo, queremos a titulação dos nossos territórios, onde estamos há 300 anos. Como vamos dialogar com o Estado se não temos o título definitivo de uma área que é nossa? Como vai ser o passo a passo deste projeto, como ele vai acontecer? Se a gente soubesse não estaríamos aqui, nesta situação. E isso tem nome, é racismo institucional estrutural contra negros, indígenas, quilombolas, qualquer população tradicional deste país”. A afirmação é de Célia da Silva Pinto, Coordenadora Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ela participou da audiência pública desta quarta-feira (10/7) da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) sobre o acordo de salvaguardas tecnológicas entre Brasil e Estados Unidos para uso comercial do Centro de Lançamentos de Alcântara, no Maranhão. O debate foi realizado em parceria com as Comissões de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) e da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI).
Em março deste ano, o governo federal assinou em Washington (EUA) um acordo que permite o uso comercial da Base Aérea de Alcântara. O acordo prevê que os Estados Unidos possam lançar satélites e foguetes da base maranhense. Na área ao redor da base aérea, vivem 27 comunidades quilombolas que correm o risco de ser removidas para o interior da ilha, em agrovilas, para execução do acordo. São mais de 2.000 pessoas em 792 famílias. O grupo exige os títulos de posse da terra, direito que já foi reconhecido Incra através do Relatório Técnico Identificação e Delimitação (RTID) publicado em novembro de 2008.
Para a procuradora federal dos Direitos dos Cidadãos do Ministério Público Federal, Déborah Duprat, “as comunidades quilombolas da região sofrem uma das mais cruéis e perversas violação de direitos humanos. Somos seres humanos e finitos, precisamos de desafios e projetos de vida para nossa existência, e isso foi roubado desta população porque não sabem o que vai acontecer no futuro”. De acordo com Duprat, o medo de perder as condições de sobrevivência como a pesca e a agricultura persiste até hoje, passados 40 anos da primeira remoção de quilombolas para a construção do Centro de Lançamentos. “Foram várias ameaças de despejo e não podemos pedir a essas comunidades que acreditem que isso não vai lhes afetar, que não vai haver ampliação, que não serão removidas e que o modo de vida não vai ser alterado. Antes de qualquer movimento, deve haver a titulação definitiva das terras pela União”.
Bira do Pindaré (PSB/MA), assim como o governador do Maranhão, Flávio Dino, defende o empreendimento, mas com o que chama de salvaguardas sociais que protejam as comunidades. “E não estamos tratando de nada estranho ao nosso meio, estamos falando do cumprimento da Constituição e também de um acordo feito em 1983 registrado em cartório, ainda antes da construção da base, que garantia terra boa e suficiente, área para pesca, a permanência das famílias juntas, água e pasto dos animais. Nada foi cumprido”. O parlamentar pede que não haja deslocamento forçado, a imediata titulação das terras e um estudo de impacto ambiental que até hoje não foi feito. “Se temos capacidade de fazer acordo com o país mais poderoso das Américas, temos que ter capacidade de fazer acordo que preserve as garantias sociais dos quilombolas”.
Áurea Carolina (PSOL/MG), ressalta que a região é “um território ancestral, marcado por muitas lutas, são modos de vidas ameaçados por este processo. Espero que estejamos construindo um entendimento para a titulação e o pagamento das indenizações. O processo de desenvolvimento não pode colidir a democracia”.
“Alcântara já passou pelos declínios das plantações de algodão e açúcar e lá foi o contrário. Os fazendeiros fugiram e os escravos ficaram”, conta o antropólogo Alfredo Almeida. Ele lembra também que na época dos primeiros deslocamentos de comunidades, em 1986, as agrovilas foram marcadas com áreas inferiores às frações mínimas previstas pela lei. “Além disso, estão em um solo semelhante ao do deserto do Saara. Lá acontece uma inversão, o Estado quer se fazer presente, mas sempre foi ausente”.
O país do “quase”
O tenente brigadeiro do ar, Carlos Baptista Junior, responsável pelo Programa Espacial Brasileiro no Ministério da Defesa, lembra que nos últimos 40 anos o país teve “quase dois sucessos na área espacial, mas nenhum deu certo”. O militar enumera os exemplos: “Em 2003, explosões destruíram o foguete brasileiro VLS e, entre 2007 e 2015, cerca de 480 milhões de reais foram gastos numa parceria com a Ucrânia no projeto Alcântara Cyclone Space, que resultou em nada”. Ele garante que a proposta atual não é a mesma acordo de 2001 e que não fere a soberania do país. “Não é 100% do que queríamos, mas avançamos muito. Não se fala em expansão neste momento, mas de consolidação da área que já é ocupada pelo CLA”.
“O brigadeiro fala que não vai ter expansão, mas querem mais 12 mil hectares do nosso litoral. Estou aqui defendendo nossa comunidade, mas tenho certeza absoluta que esta hora tá todo mundo botando rede na praia pra tirar o sustento e estão todos bem. Nossa vida é trabalhar na roça e pescar pra criar nossos filhos”, diz Leonardo dos Anjos, Coordenador-Geral do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara (Mabe).
Carlos Teixeira de Moura, presidente da Agência Espacial Brasileira, reconhece que o programa espacial não atendeu todas as expectativas criadas com a chegada do Centro de Lançamentos, mas traz alguns sucessos: “O satélite lançado em 2017 trouxe banda larga para comunidades remotas, se nos quilombos hoje tem esse serviço é por causa da tecnologia criada para atender localidades remotas”. Ele apresenta outras vantagens: “Poderíamos ter um satélite para dados meteorológicos para a agricultura, que hoje são comprados em países com programas espaciais.”
O chefe da Divisão do Mar, da Antártida e do Espaço do Ministério das Relações Exteriores explicou como foi a assinatura em Washington e a importância dele: “O objetivo fundamental é viabilizar comercialmente o Centro de Lançamentos. Os Estados Unidos detêm mais de 80% das patentes das tecnologias espaciais. Com o acordo, passaríamos essa barreira no mercado mundial dessa tecnologia e faríamos parte de um grupo muito seletivo de países com capacidade para lançar objetos no espaço. O mercado global espacial move 384 bilhões de dólares por ano, 6 bilhões em atividades de lançamento espacial”.
Felicidade
Antônio Pinho Diniz, presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara, mora em uma das agrovilas. “De agro só tem o nome, porque não tem nada e hoje só quem é ouvido são os idosos do tempo do exército. Tenho 50 anos e há 40 vivemos essa história. Porque não deu certo? Foi culpa nossa? Não, foi incompetência do governo e este acordo pode ser mais um com o mesmo resultado. Vivemos décadas de incerteza, será que amanhã vou estar na minha comunidade ou vou ser colocado num caminhão como nos anos 80? Só queremos ser felizes”.
“Esta audiência faz parte iniciativas que temos feito pela garantia dos direitos dos quilombolas de maneira geral, e de Alcântara em particular. Semana passada estivemos lá e ouvimos as comunidades que já foram afetadas pelo centro de lançamento e que podem ser afetadas pela eventual expansão, caso o acordo com os Estados Unidos seja aprovado”, explica o presidente da CDHM, Helder Salomão (PT/ES).
Também participaram Francisco Gonçalves da Conceição, Secretário de Direitos Humanos e Participação Popular do Maranhão; Davi Telles, Secretário de Ciência, Tecnologia e Inovação do Maranhão, Nathanael Silva, Assessor do Departamento de Direitos Humanos e Cidadania do Ministério das Relações Exteriores e Yuri Costa, Defensor Regional dos Direitos Humanos da Defensoria Pública da União.
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Foto: Fernando Bola